Submersos

Essa é a história de um olhar. Não um olhar que salva, que liberta, que fez sonhar o menino que corria chutando sua bola de couro pelas estradas de poeira. Não aquele olhar de carinho e zelo característico das mães que sacodem o berço para que a criança durma o sono dos anjos. Não. Aquele olhar foi diferente. E por um segundo se demorou um pouco mais do que deveria na pele daquelas coxas entreabertas. Que pelo mesmo segundo, repetido infinitas vezes, se demorou novamente dentro daqueles olhos tão castanhos quanto a tempestade que se aproximava anunciando a fúria do temporal. E então, estavam presos. Ambos comprometidos. Ambos morrendo afogados dentro daquele olhar.

 O observador veria todos esses passos mecânicos e não seria capaz de adivinhar de onde vinha tanta angústia que se acumulava naquele peito. O que mais ela teria que engolir? Quanto mais a sua garganta aguentaria ser ferida com as palavras enfiadas pra dentro?

Em um turbilhão de pensamentos, tinha medo. Parte daquela dor que lhe arrebentava o peito e as costelas nascera do medo de falar, de ouvir, de julgar… apenas seus pensamentos vagavam livres. Mas essa liberdade a aprisionava dentro do próprio corpo e a impedia de tirar os pés do chão. Talvez a melhor descrição que o narrador poderia lhe dar fosse de a de uma árvore cujas raízes se empurravam indiscretamente para dentro da terra enquanto as folhas voavam no caminho do vento. Em vão, tentava segurar suas folhas feitas de palavras. Aonde iriam sem ela? Não me abandonem. Por favor, não me faltem.

Na palavra encontrava sentido. Era na palavra, fruto do seu sangue lapidado e organizado em sentenças que conseguia existir. Quem ela seria no outono, quando suas folhas caíssem e as palavras silenciassem? O que fariam dela, as palavras? Continuariam a fazê-la crescer enquanto perdia as forças para descrever a sua relação? Uma relação tão animalesca quanto fascinante. Um continuum, que segue existindo apenas porque ninguém dá o braço a torcer. Porque a palavra existe tanto quanto ela e ambas se necessitam. Sem a palavra, ela já não era ninguém. Sem ela, a palavra já não tinha sentido.

Em meio aos pensamentos, não percebeu que o relógio já marcava o fim do expediente. Subitamente, ao ver os ponteiros alinhados no mostrador, jogou-se na realidade. Não era uma árvore. Era uma pessoa. Uma mulher. Um corpo em pânico e febre que se debatia inconscientemente enquanto tentava viver. Mas não podia mais se mover. A folha em branco na tela do laptop a impedia de seguir em frente. Precisava tirar de si aquelas palavras que pressionavam cada um de seus órgãos. Um texto furioso, nascido à fórceps, que ainda sujo de sangue seria salvo e esquecido.

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