Tintas secas

Era noite, mas também era dia. No coração, um crepúsculo apaixonado pela aurora que pinta os dias e as manhãs tão quentes do verão que já se foi. Faz tempo que é dia, embora algumas vezes o sol se põe. Aquela era uma das velhas noites frias em que o café esfriava na xícara e o cigarro se consumia sozinho no cinzeiro. O gelo transbordou da forma na geladeira como as lágrimas que pularam de seus olhos para congelar o coração que já não colore, pois as tintas secaram. Endurecidas como suas mãos que desde muito não tocavam papel ou caneta sem entender o porquê, até quando ou a que preço.
Sabia o preço. Ele era sua própria dor. A dor que consumia seu peito imóvel, anestesiado pela claridade excessiva dos dias. Feliz demais, por tantas vezes chorou de tristeza. E agora já estava seca. Secaram-lhe as lágrimas e continuou o gozo. Gozo de um prazer que já não tinha. E o que tinha?
De volta à palavra, era o eco de uma aula insana em uma sala de aula regida por uma troca sem sentido em que o ministro de toga e língua purulenta punha para fora suas vergonhas. Procurando bem, poderia ver seu intestino. Tripas revoltas retorcidas assanhadas pelos latidos dos ouvintes que babavam veneno por seus caninos afiados sedentos por carne nova e macia. Pela sua carne vermelha de sangue do útero. Uma pele consumida por sangue coagulado e leite azedo, mas que se cobria pacientemente para não revelar as cores com que se pintou no amanhecer daquele dia que durou longos meses de alegria incerta e compensadora. Quem veria suas compridas asas verdes e roxas que lhe desciam pelas costas até atingir as coxas? Ou suas mãos amarelas? Seus dentes azuis? Coxas vermelhas de sangue do parto. Menstruação. Tinta que dá cor à nova vida.
Aos poucos, também morria. Aos poucos, suas lágrimas derretiam e seu coração batia e o sangue voltava a correr. E o sangue aquecia suas veias. E seus músculos recuperavam a antiga forma. E sua pele absorvia as tintas da superfície enquanto se cobria de pelos ao som do tambor orgânico que chicoteava suas costelas. E de pelos cresceram cabelos e unhas. E do ventre cresceram vidas – árvores, flores e frutas que povoaram o umbigo do mundo. Mundo que tateava e aos poucos lhe pertencia e também secava com as tintas. Secava também na tela.
Na dúvida, foi para a janela ver as nuvens que se avolumavam. Logo, choveria. Logo, a chuva abriria sulcos profundos na terra fofa do mundo que acabou de criar. Água que brotaria da terra com sabores diversos, mas sempre fria por adivinhar que seu coração aos poucos tornaria a esfriar.
Esfriava.
E chovia.
Molhava.
Mas amanhecia.

Veneno

Escuro e úmido. Um ovo branco no buraco escuro e úmido. Um sibilar suave, leve som quebradiço e foi-se a casca. O ovo se rompeu. Rompeu-se a casca do ovo branco que foi casa da cobra que acabou de nascer. Mal brotou e sua língua já se estica em busca de alimento. Dentro do ovo no buraco escuro e úmido, há a fome. Entranhas contorcidas e dentes pontiagudos. Glândulas venenosas prontas para o uso. Não há devolução.
Também não há devolução da terra usurpada. Tomada com violência do caboclo que foge pelo mato, atrás do qual serpenteia a cobra. Talvez ela não tenha visto o brilho suave do sol que incidiu sobre o velho de cajado que caminhava entre as árvores fazendo rezas – a fome era tanta.
E parecia que naquele vale só havia fome. Fantasmas famintos seguiam seu rastro. Fantasmas de farda não apagavam o fogo da floresta. Calor e fome. O inferno. Fantasmas injetavam veneno no solo. Dormentes à espera da grande cobra anunciada.

Ecos do Contestado

No caminho, ficou um rastro de sangue.

Não era meu sangue coagulado saindo pelo útero aberto

E nem o sangue do hímen rompido

Era sangue de morte,

De gente morrida,

De gente matada.

Era gente sofrida e espoliada.

Era quem não era gente – não mais.

Serviu antes e agora incomoda.

Pega em arma,

Prepara pra luta

E luta

E mata

E morre

E quem não morre vive.

Mas nem vivo existe.

Mas vivo ou morto resiste.

Vivo e morto assiste

Olhos em lágrimas

O sangue caído

O rosto doído

De quem vê no caminho

As marcas no chão

Não são passos

Não são rastros

São marcas do progresso

Do silêncio

Do eco

Respiração

O peito infla no Contestado

O pulmão agradece o ar puro

A barriga agradece a fartura

Os pés se cansam de andar

Caminho, poeira e rastro

Passo e sangue

Sangro e passo.

Poesia perdida

É quando o mundo silencia que minha alma desperta. Vaga por entre as curvas das montanhas que cercam esse território cuja conceituação me foge e já não me interessa. Também não interessam as nuvens de chuva que se condensam enegrecendo o céu com a possibilidade de me fazer precisar acender a luz mais cedo. No chão, onde a pouca luminosidade alcança, há um buraco de vida que vive para se afogar na enxurrada que não tarda a começar.

Nas primeiras gotas, já não ouço mais o barulho ensurdecedor dos trovões que fazem tremer as paredes. Divago com os pés sem encostar o chão em busca da poesia. Coloco meus óculos, pois já não procuro a poesia inteira – parte dela está em mim e apenas uma linha se perdeu. Aonde?

Teria escapado pelo furo do fundo da minha bolsa? Ou caído no chão sem que eu notasse enquanto tentava alcançar o batom? Ou escorregou pelas bordas do meu corpo quando me deitei sobre os lençóis para mancha-los com o sangue de um útero que não fecha e não cessa de pingar. Ficaram, as minhas palavras, grudadas num amontoado de placenta no meu rastro? Ou voavam com o canto dos passarinhos que se despedem do verão nesse março que mal começou? Ou fizeram girar a Terra em seu eixo pra que eu me finalmente me perdesse de mim na rotação?

Mas encontro um ponto. E o ponto desaparece tão súbito quanto surgiu. E onde ele estava já não há mais risco preto sobre folha branca. Há branco puríssimo que reflete a luz do raio da tormenta que açoita as janelas. Há branco e por isso há nada. E ao mesmo tempo tudo. Há um indefinido, um vestígio mudo que me empurra na busca das palavras que o complementam.  Há a chuva que ameniza gradualmente para desaparecer na manhã seguinte. Há a vida afogada no buraco do chão. Há poesia perdida na pele.

Coração Contestado

Era lá e era também aqui. Lá na terra que era coberta de mato e virou roça e depois descampado pisoteado por trabalhadores que fixavam trilho e sangue. Lá onde o trilho se espalha como veias e o sangue escorre para dentro da terra que me compôs. Eu que sou terra que hoje volta a se cobrir de mato e se enrola em meus pés parecendo querer frear meu avanço, ignorando que preciso seguir no caminho pedregoso que margeia os trilhos para chegar ao local apontado pelo Santo.

E era pra lá que eu devia ir para conseguir chegar aqui. Aqui dentro onde meu coração se comprime ao perceber a linha reta da ferrovia que já não funciona, mas denuncia a distância. Muitas distâncias que se debruçam sobre as bordas dos muros erguidos ano após ano, pois não podem caber em simplificações. Porque elas escorrem como o sangue que já não cabia sobre a terra e precisou se enterrar e se levantam como o fogo que já não cabia sobre os corpos e precisou invadir as casas e se avolumam como a avareza que precisa consumir tanto quanto for imaginável existir no mundo. Nesse mundo que é tão difícil de compreender enquanto gira e que não para nunca de girar.

Gira também meu corpo em torno do seu próprio eixo enquanto passo sobre os trilhos. Há música em meus ouvidos e tropeços em meus passos. Caio sobre as pedras para manchar minha pele com o roxo da pancada do meu peso contra o ferro que me margeia. Eu que não passo de um monte de carne crispada sobre as tábuas que resistem à ação do tempo e do esquecimento. Eu que sou um saco de pele que cobre ossos sem mágoas do mundo. Eu que continuo com o sangue cuidadosamente abrigado na parte de dentro e não precisei vê-lo fugir de mim para dar vida e aquecer as veias dos trilhos enquanto a vida morria nas margens da ferrovia. Eu, que vejo o mundo de baixo, entre o rio e a rua, me levanto e sigo.

Sigo o sangue e as veias. Caminhos que levam ao coração.

Sobre as noites que começam sem por do sol

Era noite

E era dia

Era sorte

E a pele era fria

Eram trêmulos dedos

Sob a lua que brilha

Era quente o sangue

Que na pele escorria

Era a prece que se erguia

Para as nuvens daquele céu

Quando ainda era dia

Eram doces os lábios

Que se abriam em sorriso

Quando ainda era dia

Suculentos os frutos

Que amadureciam no tempo

Quando ainda era dia

Era cheirosa a panela

Que fervia

Quando ainda era dia

Era dolorosa a fome

Que ardia

Quando a noite era dia

Era triste a melodia

Da viola em cantoria

Quando a noite era dia

Era solitária a lágrima

Que caia

Quando a noite era dia

Era doloroso o furo

Da bala que se ouvia

Quando já não era mais dia

Ensurdecedora a bomba

Que a tudo destruía

Quando já não era mais dia

Era quente o fogo

Que queimava e ardia

Quando já não era mais dia

Era a fria a noite

Solitária companhia

Foi-se a fé, o irmão e o sangue

Era noite

E não era dia.

Dramas e comédias

No princípio, era o escuro. Silêncio. Você pode imaginar que eu perdi o equilíbrio na corda da vida e caí em um abismo escuro e fundo sem a possibilidade de me segurar ou de alcançar novamente a superfície. Você imagina que há vermes brancos lá no fundo, onde a luz e o som não alcançam. Você imagina que perdi toda minha potência e que cabe a você a responsabilidade de me salvar. Você é que tem o poder. Você é perfeito. Você enxerga. Você caminha com suas duas pernas. Você escuta e fala. Você zomba.

Como saberia que as quedas fortalecem se nunca caiu? E se daí do alto permanece privado do poder que é olhar e enxergar e se ver refletir no outro que não é como você?

Você não viu suas pernas imóveis por não responderem aos seus comandos. Não viu a luz do sol deixar de nascer diante dos seus olhos. Não viu o som dar espaço ao silêncio. Seu padrão é uterino, escuro, aquático e profundo. Seu padrão vem das suas entranhas, enraizado no imaginário. E no seu padrão eu não me encaixo e caio. E no meu padrão eu me encaixo e levanto para assumir quem sou, de onde vim, para onde vou e o que eu crio.

Eu e eles – nós criamos. Pintamos, dançamos, falamos, cantamos, escrevemos, dormimos, interpretamos, respiramos, sentimos. Nós pulamos, comunicamos, sufocamos, calamos, choramos, nascemos, vivemos, rimos, aprendemos, estudamos, gozamos, aplaudimos e morremos. A nossa vida se equipara, mas jamais se iguala. Afinal, a sua também não se iguala a dos seus iguais. Nós – eu e nós e você – todos filhos do útero da terra. Frutas diferentes da árvore da vida. Gostos diferentes na boca da existência. Nós, dramas e comédias.

Ventania

Ela dança enquanto passa. Ou seria o mundo que se move para fazer rodar a sua saia? Talvez o vento também segure o fôlego ao vê-la e sopre com suavidade contida para fazer tremular seus cabelos. Sopro de vento que imita minhas sensações, mas que se permite acariciar sua pele e invade o espaço entreaberto que há entre nossas mãos e entre nossos braços e entre nossos abraços e entre tudo aquilo que ela sabe e que eu não sei. Delicia-se com minha boca entreaberta e olhos e ouvidos atentos enquanto fala. E fala. E quando fala, sua voz reverbera na minha alma, fazendo crer que o tempo poderia parar naquele instante de íntima felicidade. Pare o tempo, mas não o mundo. Ele tem que girar para fazer sua saia rodar e meu corpo estremecer acompanhando sua dança.

Dança em passos largos. Gira em sintonia com o mundo fazendo parecer que suas ações são tão bem calculadas que não há espaço para mais nada. Mas deve haver. Sempre há um espaço em um coração aberto, expandido para fazer caber tantas histórias e almas e emoções. Talvez dance por descobrir que é impossível se deixar invadir por tantos sentimentos e continuar imóvel. Gira, na companhia da roda da vida, para não perder o equilíbrio. Frágil equilíbrio que mantém na corda esticada sobre a curva do rio.

Não cai nas águas que borbulham em correnteza lá longe, perto do chão. Ou seria a sua saia que se aproxima dos céus? Sustentada nas alturas por suas linhas de pensamento tão sólidas, permanece firme no livre trânsito entre o ir e o voltar; entre a espacialidade do infinito e a solidez da terra; entre as nuvens e o vapor d’água; entre o abraço e a ausência. Parte num sopro de vento, volta num tremular de saia.

Ponto final

Hoje escrevi com uma caneta vermelha. Vermelha como meus cabelos que se alinham presos pelo calor que me faz amolecerem os braços e pernas. Vermelha como o batom que me cobre os lábios e como as rosas que devem estar floridas nesta época, estourando como feridas abertas naquela terra que se espalha por um território tão grande que já não cabe em meu peito. Já se estendeu para meu pescoço que não guarda marcas da pedra, do fio da lâmina ou das lágrimas de sangue que choraram uma dor também roubada. Um sangue que também corre nas minhas veias em gritos frenéticos, buscando um canal de escapar e que encontra através das minhas mãos. Serpenteiam palavras num rio de sangue e tinta vermelha sobre o papel.

São vozes. São gritos. Reflexões tão íntimas que me arrepiam a pele e fazem lembrar das tantas vezes que se calaram forçadamente por minha alma que deixava falar apenas a voz da razão. Mas não existe razão em nada que é real. Não é racional ou civilizado encontrar resgatado algo tão simples e bonito quanto um olhar que se acende em fúria, despido de vergonha. São olhos que lutam em muitas frentes e contra seus próprios demônios e que sopraram para mim a fogueira da vida que se extinguia e das brasas retiraram o véu da ignorância. Num segundo sopro, as brasas recuperaram seu rubor clamando pelo fogo que viria a consumi-las. Chiavam as chamas enquanto eu, fogueira em brasa, ardia por seu sorriso disfarçado nos cantos dos lábios antes de se transformar em uma gargalhada que faz tremerem as águas do rio. Lambiam as labaredas no tintilar das taças que se erguiam em brindes e mais brindes por uma vida que passara a ser tão linda e tão gostosa de ser vivida e sentida. Subia a fumaça em conjunto com as fumaças que fazíamos e que não eram nada senão a evidência de um fogo que não se apaga e continua a queimar e arder e estalar e escurecer o chão onde está.

Mas não queima minhas asas e eu, que já parti do chão como ave assustada, sinto o vento cortar minhas penas e vejo a cidade diminuir conforme ganho altura. Mesmo no céu, não perdia a terra de vista. Precisava dela. Precisava daquele solo de terra escura de sangue chorado escurecendo suas pelas e pelos e escamas e pele e cabelos. Mais uma vez, precisava rolar na grama úmida depois da chuva de verão que se precipita do lado de fora para que não esquecesse que também era terra. Aquela terra. Fogo e fumaça, cinza e brasa, línguas e salivas, flores e asfalto, noite e dia – tudo que havia para ser e era e estava em cena repetidas vezes como o ponto final que insistia em não chegar para não calar o que ainda precisada ser dito.

Não calava as palavras que se acotovelam para pintar o papel de vermelho. Nem as lembranças que borbulham em minha mente para retirar dela a sanidade e deixar aflorar a selvageria que teria coragem de romper as amarras e saltar sobre cercas e muros e portões, correr por ruas, subir e descer os morros para enfim chegar ao destino e respirar fundo, tomando fôlego antes de se lançar nos braços que me esperam. Braços e um corpo e alma que me esperam descansar a caneta e seguir de mãos dadas pelo mundo que se descortina em nossa frente. Mãos dadas e almas unidas, sem ponto final